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a faixa de praia

o espaço normatizado e suas resistências silenciosas

   É dia nove de janeiro e o lixo ainda se acumula. Garrafas, rolhas, latas amassadas, maços vazios de cigarro. Um balão amarelo. Banhistas se divertem enquanto garis recolhem os restos de festa deixados aos montes na areia, inúmeros pontos negros na faixa amarelecida. O lixo se acumula nas aberturas de esgoto. Estruturas de ferro e lona onde se lê Reveillon Fortaleza 2016 também estão ali, inconvenientes. O palco é mudo e cerca o mar junto à dezenas de edifícios envidraçados. Os carros andam devagar e só ali parecem obedecer aos pedestres que desejam atravessar a rua. As pessoas andam também, param alguns instantes para uma foto, sentam-se por minutos nos bancos junto à areia e logo seguem em linha reta, despretensiosamente. O mar está calmo e um senhor boia, deixando-se afastar da areia com seus olhos fechados. Couro! Renda!  Castanha! Cachaça! Rapadura! - gritam os primeiros feirantes a abrirem suas barracas, atraentes. Nas barracas de praia os sons se sobrepõem, ouvem-se línguas estranhas, um farfalhar de garfos e copos cheios de caipirinha. São quase quatro horas da tarde e os turistas pedem preguiçosamente o almoço, estão de férias, deixam que o novo ano chegue devagar, ainda comemoram. A cidade parece se desconstruir nostalgicamente do espetáculo montado aos visitantes.

    Somente na alta estação de 2012, Fortaleza recebeu cerca de 400 mil turistas que deixaram por aqui cerca de 600 milhões de reais segundo a Secretaria de Turismo do Estado. O Bairro Meireles, em especial a orla da Beira Mar, é símbolo desse potencial turístico da cidade desde meados da década de 60, período da abertura da avenida litorânea. Atualmente, a areia da beira mar é palco de inúmeros eventos que reúnem turistas e pessoas dos mais diversos bairros de Fortaleza: o Reveillon, o carnaval, os eventos religiosos, a parada gay. O próprio fato de ser uma região de frente marítima, faz desse trecho uma “fachada” importante do projeto de cidade espetacularizada que os gestores e investidores se propõem a construir através de projetos urbanos de reordenamento da orla, a citar o projeto ainda inacabado “Parque Av. Beira-mar”, de autoria dos arquitetos Ricardo Muratori e Fausto Nilo, com a implantação de vias de pedestre, quiosques multifuncionais, hierarquização das vias e espaço para feira de artesanatos, etc., medidas que acabam servindo de promoção pública e fator de valorização dos rentáveis imóveis de luxo que incentivam a segregação socioespacial na área, a aparente pacificação dos conflitos e uma padronização do espaço, com a instalação de equipamentos ditos públicos e de qualidade.

    É sábado, alguns correm, exercitam-se com seus tênis e óculos escuros, ao ritmo da música que toca em seus fones de ouvido. Um menino anda de skate, no mar, os surfistas. Despercebido, um homem enche uma grande garrafa com areia. Negro, sem blusa, ninguém o acompanha. Enche a garrafa cuidadosamente até o fim e a tampa. Senta-se num banco próximo à areia, ninguém o vê ou o evitam. Começa então sua primeira tentativa: ele apoia a garrafa nos pés e a suspende, a garrafa cai a menos de dez centímetros do chão. Ele repete o processo, a garrafa cai. A garrafa cai pelo menos cinco vezes. Ele não se perturba. Coloca então a garrafa sobre um dos pés e segura a parte da tampa com a mão. Ele levanta o peso da garrafa, cinco quilos, cinco vezes em cada perna. Volta a apoiar a garrafa sobre os dois pés e dessa vez usa as havaianas por cima, na tentativa de evitar que a garrafa deslize. Ele suspende as pernas. A garrafa fica. Então ele continua sua série de exercícios obstinadamente, tal qual um atleta que se prepara para as olimpíadas ele persiste e sua e descansa. Não olha pros lados, ele sabe que está só. Mas se fortalece, passa a exercitar os músculos magros do braço, ele e sua garrafa de areia. A garrafa-lixo, a garrafa-festa, a garrafa que algum turista bebeu água gelada enquanto dançava na famosa festa de reveillon de Fortaleza, a garrafa agora do negro de rua. A garrafa, a areia e o homem.

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