
DE OESTE A LESTE

Conhecer um espaço da cidade nunca antes visitado por nenhum dos integrantes do grupo era excitante. O caminho percorrido pela topique 54 já dava sinais de que aquela seria uma experiência enriquecedora, entre o doméstico Benfica e o desconhecido Pirambu a cidade variava suas feições.
Ao chegar à avenida leste-oeste, não haviamos ideia de onde descer. Um passageiro da topique nos respondeu “vocês querem conhecer o Pirambu?” com uma expressão de surpresa no rosto, “desçam na próxima”. Ao descermos outro passageiro nos ajudos a decidir que lado seguir. “Mas vocês querem conhecer o Pirambu?” e novamente a expressão de surpresa. “É que nós somos estudantes de Arquitetura e Urbanismo na UFC e viemos fazer um trabalho”, o estranhamento sumiu do seu rosto e um grande sorriso de abriu “Só não acompanho vocês porque estou com pressa. Desçam ali na Theberge”.
A tensão era visível nos nossos corpos ao descer a rua, que era perpendicular a Leste-Oeste, celulares escondidos nas calças, olhar atento. Estávamos no famigerado Pirambu ,o Vixe! Como nosso segundo guia nos explicou. Conforme os quarteirões passavam a nossa tensão diminuía, ao chegar ao terceiro quarteirão, as grades nos estabelecimentos comerciais já não nos assustavam tanto como assustaram no primeiro. Eles contrastavam com o intenso movimento nas ruas, onde as calçadas funcionavam como uma extensão das lojas, e a rua funcionava como uma extensão da calçada. Nela coexistiam carros e pedestres. Pessoas, carros, motos, ônibus e caminhões pertenciam a um caos ordenado.
Ao final da Theberge nos deparamos no topo de uma ladeira que fez nosso olhar desembocar no mar, agora não víamos mais lojas, nem carros, nem o fervilhar de gente, apenas um amplo azul diante de nós. Parecia-nos uma outra dimensão que nos convidava a conhecer a calmaria que havia do outro lado. Avançamos, à beira mar havia uma longa faixa de calçadão. À esquerda não era possível enxergar seu fim, à direita o limite era bem claro, o calçadão terminava em um muro branco. Lá não acabava tanto a calçada quanto a segurança, como nosso guia nos esclareceu em seguida.
O movimento que havia no calçadão era completamente diferente do que havia na rua que acabáramos de deixar. Quatro crianças soltando pipa, três mais a frente, uma um pouco mais distante de nós, todas de pés descalços. Caminhamos em direção ao muro branco. Uma rua de calçamento separava o calçadão das casas. Estas com, no máximo, dois andares, algumas sem acabamento, outras revestidas em azulejo. Ao chegarmos próximo a quarta criança ela nos olhou, puxamos assunto sobre a pipa, a conversa não se prolongou muito, seguimos em frente. Alguns passos depois encontramos o homem que se tornaria nosso companheiro no Pirambu. Dessa vez ele puxou o assunto. “Olha, lá vai ele chorando pegar outra pipa. Sabe perder não, derruba a pipa dos outros, mas quando derrubam a dele ele fica assim”, e apontou para o quarto menino.
Sorrimos, ele retribuiu o sorriso. “Como é seu nome?”. “Francisco, mas pode Chamar de Chico”.
Tínhamos conversa que não acabava mais. Também nos apresentamos "Somos estudantes de arquitetura e urbanismo da UFC e viemos conhecer o Pirambu”,“Pra onde vocês querem andar?” respondeu, “Pralí” e apontamos para o muro branco. A careta que tivemos como resposta adiantava a explicação que estava por vir. “Se eu fosse vocês eu num ia pra lá não, lá tem é bala. De noite tem gente que fica é assistindo daqui do calçadão, gente já gosta de ver coisa ruim. Mas eu vou até ali com vocês, vamos”. Continuamos a conversa curiosos com aquela pessoa tão simpática “E o senhor, com o que trabalha?” “Eu sou pescador, tem dias que eu saio 2h da manhã. Ela faz o café e me acorda.” Apontou pra uma janela de frente para o mar onde estava a sua companheira, Adriana, a quem f omos apresentados quando chegamos em sua casa.
Seguimos pelo calçadão. No chão, algumas pedras estavam soltas. Seu Chico, reparando nossa curiosidade disse.“É o pessoal daqui que tira. Pode procurar, tem um monte de casa aqui usando essas pedras, eles tiram. Eu trabalhei aqui nessa obra...”. E no caminho conhecemos sobre seu Chico e percebiamos sua boa relação com as pessoas da rua. “Esse coqueiro aqui ficava no nosso quintal”. E nos falou sobre a desocupação por conta do Projeto Vila do Mar e que continuou morando ali porque é pescador e pescador não pode viver longe do mar, pois “quem tem o mar não morre de fome”. Contou que tinha muita gente que morava onde hoje é o calçadão e que muitos foram para um mutirão que fica na Francisco sá. Antes da remoção das casas, o mar havia avançado e derrubado uma delas. Contou-nos que tinha quatro filhos, que já tinha netos e que estava com a Adriana desde os 14 anos.
Chegamos ao muro branco. Ali era uma pequena estação de tratamento de água. Dali em diante não havia mais calçamento, nem calçadão. Algumas casas eram de compensado. Aquela era a zona proibida. Seu Francisco nem passava e nem nos deixava passar.
Ele nos levou até sua casa, para que conhecêssemos dona Adriana. A casa não tinha acabamento. Formada por poucos cômodos, dos quais o maior era o quarto do casal, onde havia uma grande cama e uma televisão de muitas polegadas sobre uma cômoda. Mas o maior charme do quarto era a janela, a mesma da qual vimos a Adriana pela primeira vez, sua vista dava para a imensidão do mar, pra fonte de alimento deles. A outra janela que dava da rua para a sala tinha sua história, Seu Chico só havia conseguido contruí-la pois um pedreiro amigo seu trocou o serviço por um dos canarinhos que Chico criava.
Adriana conta quando ela plantou aquele coqueiro que nós vimos. Que estava muito satisfeita por não sair dali. Mas que a sua casa anterior era melhor e maior do que aquela, sentia falta do seu quintal. Disse que a prefeitura deu aquela casa em troca da que foi derrubada. Que era ainda menor, e por isso eles deram uma indenização que permitiu que eles a ampliassem construindo aquele quarto. Disse também que o processo para conseguir a casa e a indenização não foi fácil, mas estava feliz por está ali. No quarto havia também uma máquina de costura, que Adriana usava para costurar encomendas. Seu Francisco nos convidou para andar no espigão. Fomos caminhando para a porta enquanto dona Adriana nos falava sobre seus filhos. Três homens e uma mulher, seis netos, o mais novo era menor de idade e estava de recuperação. “Saiu daqui dizendo que num tinha aula não... Mas eu também faltava aula, pulava o muro da escola pra vir pro mar", disse seu Chico. Despedimo-nos de Adriana e fomos a caminho da praia. Chico então diz que aprendeu a pescar com um amigo do bairro aos 9 anos. O ofício que não aprendeu na escola. Os outros filhos trabalham na construção. Ao chegar ao espigão, ele nos mostrou sua jangada que estava atracada. Nos prometeu uns peixes que daria pela amizade. Observamos como era bonito ver o Pirambu do mar. Uma faixa de casas pequenas e coloridas sobre um morro com o céu azul ao fundo, que constrastava com os prédios altos da Beira- Mar no lado esquerdo.
Já voltando para casa, subimos a ladeira que dava acesso à Theberge. Deixamos para trás aquele “mundo paralelo” e começamos a nos reconectar à realidade de onde partíramos, os carros, as lojas, a pressa. Nossos corpos já não expressavam mais nem um sinal de tensão por estar no pirambu. Chegamos a leste-oeste e pegamos a mesma topique 54 que viemos. Mas nós já não éramos mais os mesmos.
"O VIXE"
